quinta-feira, 13 de agosto de 2009

É proibido fumar - by Dan Thomaz

Corra que o fumante vem aí....


Costumava andar desatento pelas ruas. Utilizava minhas caminhadas para pensar em como melhor a frase de um texto ou resolver o impasse de uma narrativa. Mesmo assim nunca foi bobo. Sabia em que cidade estava, São Paulo. Mesmo assim fui bobo. Achei que o mulatinho, tão desbotado quanto sua roupa e seu boné, era apenas um moleque pobre e que, branco e estudante de uma universidade particular, com camiseta Ellus, calça Levi’s e sapatênis Adidas, não passava de um burguesinho preconceituoso. Após atravessar a rua com o instinto de sobrevivência, caminhei pela calçada com a cultura da culpa. E tive de ouvir – num português menos correto:
“Por que você atravessou a rua? Tá achando que eu vou te assaltar?”
Burguesinho branquelo, acelerei o passo do meu Adidas.
“Hein, por que atravessou a rua? Por que está andando rápido?”
Burguesinho branquelo, olhei para a marquise e respondi para ele – num português mais correto:
“Atravessei a rua porque era este o meu caminho. Estou andando rápido porque estou com pressa.”
“Anda devagar, por que a pressa? Tá achando que eu vou te assaltar, moleque?”
Com os olhos na marquise, sem vê-la, ouvi a mesma pergunta mais duas vezes. E respondi como se responde um burguesinho branquelo, sem ascendência africana e escrava:
“Estou andando rápido porque estou com pressa! Não estou achando nada de você! Pegue seu caminho, que eu pego o meu!”
E acelerei meu Adidas (burguesinho branquelo, não tinha preocupações com a sola).
Mas ele também acelerou o passo. Não me importei. A sobrevivência deu lugar ao desafio. Um menino desses não vai desviar meu caminho. E não desviou. Mesmo arranhando minha barriga com uma faca de cozinha e pressionando o meu pescoço com a mesma. A faca, diga-se de passagem, subiu da barriga pro pescoço por um motivo muito simples: perguntado sobre meus pertences, indisposto a lhe dar um centavo, disse que tinha cigarro no bolso. E ouvi, num português cheio de cracks emitido por uma língua mole:
“Que cê tá achando que sou, mano, pra me oferecer cigarro?”
Era final de outubro de 2008. Ainda não havia uma lei que me nivelasse a ele. E, por isso, respondi:
“Nada, se eu fumo por que você não pode fumar?”
Assim como para o governador José Serra, para o mulatinho desbotado, o cigarro era algo inaceitável. Pela sugestão, fui castigado com uma faca afundando no meu pescoço, seguida de ameaças de morte. Durante quinze minutos. Ao fim de tudo, não havia um policial na rua. Uma blitz. Alguém me pudesse encaminhar a uma delegacia. Houve uma mulher que passou na minha frente, quando eu estava sentado numa viela, abrindo minha mochila, entregando-lhe meus pertences, com a faca no limite tênue entre a minha vida e apenas uma maneira de ele prover seu vício.

Quase um ano se passou desde aquele evento. Hoje, tremo levemente e olho para os lados quando acendo um cigarro na rua. Ando com pressa, meu Adidas tem menos sola. Mesmo assim, tomo cuidado, não posso esbarrar em ninguém, com um cigarro na mão. Não. As pessoas podem se assustar, como eu, em outubro de 2008. E estarão certas, como eu estava, em outubro de 2008. Mas estarão amparadas, ao contrário de mim, em outubro de 2008. Poderão me delatar para a polícia. Encontrarão um mutirão para me levar à polícia. Poderão, inclusive, se juntar ao mulatinho desbotado, na luta, no assassinato de branquelinhos burguesinhos como eu. Isso se ele já não estiver morto. É um viciado. Assim como eu.

É proibido fumar - by Monica Waldvogel

[texto apresentado no programa "Entre Aspas" no dia 30/07]


Na semana que vem os fumantes de São Paulo finalmente vão entrar na linha. Vai ficar proibido fumar no bar, no cabeleireiro, no salão de festas do prédio. Os fumódromos serão extintos. A punição para a desobediência é multa pesada. Mas quem vai pagá-la será o síndico, o dono do estabelecimento. Alguém vai ter que ser responsável pelo controle das baforadas dos outros. Fácil adivinhar que vai dar confusão. Mesmo assim, os combatentes do tabaco comemoram. Esperam que a lei paulista, como outras, logo vire brasileira. Exaltam a vitória e a virtude do politicamente correto. Há, porém, quem lamente tanto controle sobre a vida e as escolhas de cada um. Há os que receiam viver num mundo tão cheio de normas e regras; de proibições ou que todas as pessoas vivam no mesmo credo na saúde e na boa-forma, como se essa fosse a única vida possível. Um mundo que levanta fachadas morais bem chamativas para disfarçar todo o caos por trás. Afinal, até o pouco transgressor Roberto Carlos, numa canção antiga, já perguntava:
“Será que tudo o que gosto é ilegal, imoral ou engorda?”